Dia 4: Betanzos – Bruma – Dificuldades e Medos

Salmo 21(22)

A Aflição e a Libertação

SENTIDO INICIAL 

Este salmo é um dos pontos culminantes do saltério e da fé de Israel, um dos maiores textos da Bíblia e de toda a literatura religiosa. 

I O salmista considera-se um homem abandonado, alguém a quem o Senhor não responde nem presta atenção (2-3). Mas ele sabe que Deus habita no santuário e sempre salvou Israel nas suas aflições (4-6). Por isso, apesar de todos escarnecerem dele (7-9), este homem de fé recorda ao Senhor que ele Lhe pertence desde o seio materno (10-11) e pede-Lhe que o ajude, porque está atribulado (12). 

II A segunda parte compara os inimigos do salmista a manadas de touros e ao leão que devora e ruge (13-14), e descreve o estado lastimável a que foi reduzido (15-16), como o cercou um bando de malfeitores que lhe trespassaram as mãos e os pés, repartiram as suas vestes e deitaram sortes sobre a sua túnica (17-19). A esperança, porém, não abandona este infeliz, que pede a Deus que o socorra e salve (20-22) para continuar a anunciá-l’O e a louvá-l’O (23). 

III Na última parte, o salmista convida Israel a louvar o Senhor porque não desprezou o atribulado nem lhe escondeu a sua face, antes o socorreu (24-25), e em tom profético anuncia que cumprirá a sua promessa e que os pobres hão-de ser saciados (26-27), que os confins da terra hão-de converter-se e adorar só a Deus (28-30), e que ele próprio e a sua descendência viverá para o Senhor e para revelar a sua justiça ao povo que há-de vir (31-32). 

SENTIDO ACTUAL 

Salmo clássico da paixão, encontramo-lo no Ofício de Leitura de Sexta-feira Santa e na Hora Intermédia de hoje, a hora mais aproximada daquela que viu a paixão e a morte do Senhor na cruz. 

Nenhum outro salmo evoca os acontecimentos da paixão de maneira tão realista. Jesus experimentou tudo aquilo que nele se diz. Abandonado por todos, viveu sozinho a sua morte, enquanto o Pai parecia esconder-se-Lhe, apesar de Jesus chamar continuamente por Ele e esperar a sua ajuda. Mistério do abandono de que tantos místicos falam. À sua volta via só hostilidade: as pessoas zombavam, abanando a cabeça em sinal de desprezo, os chefes ironizavam: «Confiou em Deus; Ele que o livre agora, se o ama» (Mt 27, 43); os soldados repartiram entre si as suas vestes (Jo 19, 24); e antes de expirar, Jesus passou, como o salmista, pela provação da sede (Jo 19, 28). 

Mas para Jesus, a morte foi a passagem à vida em plenitude, porque o Pai não O tinha abandonado, ressuscitando-O ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Durante quarenta dias Jesus ressuscitado aparece aos discípulos, para que eles tomem consciência do grande mistério. Doravante, Ele reina sobre todas as coisas e todos os seres: «O reinado sobre o mundo foi entregue a nosso Senhor e ao seu Cristo; Ele reinará pelos séculos dos séculos» (Ap 11, 15). E os seus fiéis proclamam de idade em idade, como o apóstolo Paulo: «O Senhor esteve comigo e deu-me forças, a fim de que, por meu intermédio, o anúncio fosse plenamente proclamado e todos os gentios o escutassem. Assim fui arrebatado da boca do leão. O Senhor me livrará de todo o mal e me levará a salvo para o seu reino celeste. A Ele, a glória, pelos séculos dos séculos» (2 Tim 4, 17-18). 

No comentário de Santo Agostinho, o salmista é um verdadeiro profeta de Deus e as palavras que ele escreve referem-se directamente às coisas que aconteceram a nosso Senhor Jesus Cristo crucificado. É Cristo que aqui fala em vez de nós. As perguntas do Filho de Deus são um símbolo das nossas próprias interrogações acerca do que não compreendemos. 

Salmo 21 (22) 

Jesus exclamou em alta voz: «Eli, Eli, lamma sabacthani?» (Mt 27, 46). 

Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes? * Como estais longe da minha oração, †

das palavras do meu lamento! 

3  Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis, * clamo de noite e não me prestais atenção. 

4  Vós, porém, habitais no santuário, * sois a glória de Israel. 

5  Em Vós confiaram nossos pais, * confiaram e Vós os libertastes. 

6  A Vós clamaram e foram salvos, * 

confiaram em Vós e não foram confundidos. 

7  Eu, porém, sou um verme e não um homem, *

o opróbrio dos homens e o desprezo da plebe. 

8  Todos os que me vêem escarnecem de mim, * estendem os lábios e meneiam a cabeça: 

9  «Confiou no Senhor, Ele que o livre, * Ele que o salve, se é seu amigo». 

10  Fostes Vós que me tirastes do seio materno, *

sois Vós o meu defensor desde o regaço de minha mãe. 

11  A Vós fui entregue logo ao nascer, * desde o seio materno sois o meu Deus. 

12  Não Vos afasteis de mim, porque estou atribulado, * e não há quem me ajude. 

II 

13  Manadas de touros me cercaram, * touros de Basã me rodeiam. 

14  Abrem as fauces contra mim, * 

como leão que devora e ruge. 

15  Sou como água derramada, * desconjuntam-se todos os meus ossos. 

O meu coração tornou-se como cera * e derreteu-se dentro do meu peito. 

16  A minha garganta ficou seca como barro cozido † e a minha língua colou-se ao céu da boca. * 

Assim me reduzistes ao pó do túmulo. 

17  Matilhas de cães me rodearam, * cercou-me um bando de malfeitores. 

Trespassaram as minhas mãos e os meus pés, * posso contar todos os meus ossos. 

18 Eles, porém, contemplaram e observaram-me. *

19 Repartiram entre si as minhas vestes †

e deitaram sortes sobre a minha túnica. 

20  Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim; *

sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me. 

21  Livrai a minha alma da espada *

e das garras dos cães a minha vida. 

22  Salvai-me das fauces do leão *

e dos chifres dos búfalos livrai este infeliz. 

23  Hei-de falar do vosso nome aos meus irmãos, * hei-de louvar-Vos no meio da assembleia. 

III 

24  Vós que temeis o Senhor, louvai-O, * glorificai-O, Vós todos os filhos de Jacob, † reverenciai-O, vós todos os filhos de Israel. 

25  Porque não desprezou nem repeliu a angústia do atribulado, * nem escondeu dele a sua face, †

mas atendeu-o quando Lhe pediu socorro. 

26  Ele é o meu louvor na grande assembleia, * cumprirei a minha promessa 

na presença dos que O temem. 

27  Os pobres hão-de comer e serão saciados, * louvarão o Senhor os que O procuram: † 

«Vivam para sempre os seus corações». 

28  Hão-de lembrar-se do Senhor e converter-se a Ele * todos os confins da terra; 

e diante d’Ele virão prostrar-se * todas as famílias das nações. 

29  Ao Senhor pertence a realeza, * é Ele quem governa os povos. 

30  Só a Ele hão-de adorar todos os grandes do mundo, * diante d’Ele se hão-de prostrar †

todos os que descem ao pó da terra. 

Para Ele viverá a minha alma, *

31 há-de servi-l’O a minha descendência. 

Falar-se-á do Senhor às gerações vindouras *

32 e a sua justiça será revelada ao povo que há-de vir: † «Eis o que fez o Senhor». 

Glória ao Pai…

COMENTÁRIO DE SANTO AGOSTINHO 

«Que querem dizer as palavras que acabais de ouvir? Se as pudéssemos escrever com as nossas lágrimas! Este salmo descreve a paixão de Cristo de maneira tão evidente que parece o Evangelho, e no entanto foi composto não sei quantos anos antes de o Senhor ter nascido da Virgem Maria. 

Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes? 

Porque fala Ele desta maneira? Porque estávamos lá nós, porque a Igreja é o corpo de Cristo. Como pode falar dos meus pecados? Porque implora o perdão das nossas faltas que fez suas, para que a sua justiça se tornasse nossa. 

Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis, clamo de noite e não me prestais atenção. Jesus falou por mim, por ti, por Ele. Pregado na cruz estava o seu corpo, que é a Igreja. Acaso pensais, irmãos, que o Senhor tinha medo de morrer quando dizia: Pai, se é possível afasta de mim este cálice? O soldado não é mais valente que o general. Basta ao discípulo ser como o seu mestre. Paulo, soldado de Cristo, nosso rei, reconhece: Sinto-me pressionado por dois desejos: quereria partir para estar com Cristo. Se Paulo deseja a morte para estar com Cristo, como pode Cristo temer a morte? 

Cristo levou sobre Si as nossas enfermidades. Se fala desta maneira, não será em nome de todos os que formam o seu corpo e que temem a morte? Era a voz dos membros e não a da cabeça: Clamo de noite e não me prestais atenção. Sim, muitos clamam na provação e não são atendidos, mas isso acontece para os salvar e não para os perder. 

O próprio Paulo orou para que o espinho que o feria na carne lhe fosse tirado e não foi ouvido. Deus disse-lhe: Basta-te a minha graça, porque a minha força triunfa na fraqueza. Não foi ouvido. Isso, porém, não foi a sua perda, mas a sua salvação». 

ORAÇÃO SÁLMICA 

Senhor Jesus, que na angústia do supremo abandono gerastes a vossa Igreja, reuni-a de todos os confins da terra para que, em uníssono, possa cantar eternamente a vossa ressurreição. Vós que sois Deus.

Partilhar notícia:

Outras Notícias